Meu emprego de freelancer me possibilitou algo inusitado: Estar
em uma quantidade enorme de “não-lugares” que ao mesmo tempo se tornaram “lugares
tão comuns” que é praticamente impossível não captar as diversas expressões de
uma mentalidade popular tão intrigante e, por vezes engraçada. Como
observadora, certas situações foram capazes de despertar em mim sentimentos tão múltiplos, que mais que
registrá-los, achei por bem, compartilhá-los, e começo pelo mais recente:
Seguia rumo à última aula do dia. Havia acabado de me sentar
à terceira fileira da van para fazer o trajeto Bento Ribeiro X Vila Valqueire e
estava a retirar uma dúzia de moedas de dentro da bolsa para pagar a passagem quando
o assunto na fileira da frente me chamou a atenção. Duas senhoras de meia idade
que não se conheciam começaram a conversar sobre o trágico acidente que havia
ocorrido no dia anterior e que envolvia um ônibus cujo motorista, que até onde
se sabia, agredido por um passageiro, acabara por perder a direção levando o
ônibus a cair de um viaduto, matando 8 pessoas e deixando 11 feridas. Uma
delas, um pouco mais velha, lamentando a atitude do agressor, dizia que ele havia
colocado não só a vida dele, mas a de todos passageiros em risco. A segunda, dizia
que o motorista também estava errado e argumentava:
_ “Estou cansada de ver motoristas agredindo mulheres e
idosos. Eles geralmente não tratam homens assim. Isso aí foi uma exceção,
porque eles sabem que se fizerem isso com um homem estão arriscados a tomar um
soco.”
_ “O motorista pode estar errado, mas o outro conseguiu
estar mais errado do que ele.” – Disse a senhora mais velha.
_ “O mundo está tão violento...” – Suspirou a primeira.
_ “Não é o mundo não, minha filha! O ser humano que está
passando dos limites. (...) Os adolescentes de hoje, são aborrescentes, moça.” –
disse a mais velha, indignada.
_ “A senhora está coberta de razão.”
_ “Esses dias, quase fui atropelada por um menino de
bicicleta. Ele ainda gritou: Quer morrer? (...) No meu tempo, botava de castigo
ajoelhado no milho e batia com borracha de pneu. Hoje em dia, os filhos
aprontam e as mães acham graça. Não tem mais o que fazer. “Orai e vigiai”. É a
coisa mais certa que Deus escreveu na vida.”
A senhora mais nova que havia iniciado o assunto, contou que
trabalhava em uma escola e falou da dificuldade de ter que lidar com o
comportamento agressivo de jovens todos os dias. A outra senhora, ainda mais
indignada concluiu:
_ “Se eu fosse professora já estava fora há muito tempo. Na
nossa época, elas colocavam a gente com a cara na parede.”
_ “Antes era exagerado pra mais, agora pra menos. Eu não gostaria
de ter que dar reguada em aluno.”
- “Eu não acho não. É por isso que o mundo está assim. Na
minha época não precisava professora bater, meu pai mesmo batia.” – E despediu-se,
informando que desceria no próximo ponto.
E assim terminou o assunto sobre violência. Elas
provavelmente nunca mais voltariam a se encontrar. A senhora indignada desceu
no ponto seguinte, não trocaram telefone, nem mesmo souberam seus nomes, entretanto, algo muito mais complexo: suas impressões, seus valores, sua rotina, seu passado e suas expectativas para o futuro. Esse tempo que detém o poder de transformar as coisas e as relações com as coisas. Assim como a minha relação com o passageiro que subiria a seguir, cuja figura não me parecera estranha desta vez. Era um senhor grisalho
que já havia entrado numa van que faz o mesmo percurso e cumprimentado os passageiros com um “boa noite a
todos” recebendo em troca uma resposta tímida. Eu mesma não me lembro de tê-lo respondido. Entretanto, logo que sentou-se estendeu a mão cheia de moedas para pagar sua passagem e desculpou-se dirigindo-se ao motorista. Sorri. Percebi que a minha relação com aquele senhor acabara de ser transformada naquele espaço quando apertei nas mãos a minha própria dúzia de moedas. Então disse: _“Vou fazer mesmo!” E naquele instante acabávamos de traçar o nosso "lugar" comum.