quarta-feira, 3 de abril de 2013

LUGARES TÃO COMUNS: Violência


   Meu emprego de freelancer me possibilitou algo inusitado: Estar em uma quantidade enorme de “não-lugares” que ao mesmo tempo se tornaram “lugares tão comuns” que é praticamente impossível não captar as diversas expressões de uma mentalidade popular tão intrigante e, por vezes engraçada. Como observadora, certas situações foram capazes de despertar em mim  sentimentos tão múltiplos, que mais que registrá-los, achei por bem, compartilhá-los, e começo pelo mais recente:

   Seguia rumo à última aula do dia. Havia acabado de me sentar à terceira fileira da van para fazer o trajeto Bento Ribeiro X Vila Valqueire e estava a retirar uma dúzia de moedas de dentro da bolsa para pagar a passagem quando o assunto na fileira da frente me chamou a atenção. Duas senhoras de meia idade que não se conheciam começaram a conversar sobre o trágico acidente que havia ocorrido no dia anterior e que envolvia um ônibus cujo motorista, que até onde se sabia, agredido por um passageiro, acabara por perder a direção levando o ônibus a cair de um viaduto, matando 8 pessoas e deixando 11 feridas. Uma delas, um pouco mais velha, lamentando a atitude do agressor, dizia que ele havia colocado não só a vida dele, mas a de todos passageiros em risco. A segunda, dizia que o motorista também estava errado e argumentava:

_ “Estou cansada de ver motoristas agredindo mulheres e idosos. Eles geralmente não tratam homens assim. Isso aí foi uma exceção, porque eles sabem que se fizerem isso com um homem estão arriscados a tomar um soco.”
_ “O motorista pode estar errado, mas o outro conseguiu estar mais errado do que ele.” – Disse a senhora mais velha.
_ “O mundo está tão violento...” – Suspirou a primeira.
_ “Não é o mundo não, minha filha! O ser humano que está passando dos limites. (...) Os adolescentes de hoje, são aborrescentes, moça.” – disse a mais velha, indignada.
_ “A senhora está coberta de razão.”
_ “Esses dias, quase fui atropelada por um menino de bicicleta. Ele ainda gritou: Quer morrer? (...) No meu tempo, botava de castigo ajoelhado no milho e batia com borracha de pneu. Hoje em dia, os filhos aprontam e as mães acham graça. Não tem mais o que fazer. “Orai e vigiai”. É a coisa mais certa que Deus escreveu na vida.”
   A senhora mais nova que havia iniciado o assunto, contou que trabalhava em uma escola e falou da dificuldade de ter que lidar com o comportamento agressivo de jovens todos os dias. A outra senhora, ainda mais indignada concluiu:
_ “Se eu fosse professora já estava fora há muito tempo. Na nossa época, elas colocavam a gente com a cara na parede.”
_ “Antes era exagerado pra mais, agora pra menos. Eu não gostaria de ter que dar reguada em aluno.”
- “Eu não acho não. É por isso que o mundo está assim. Na minha época não precisava professora bater, meu pai mesmo batia.” – E despediu-se, informando que desceria no próximo ponto.

   E assim terminou o assunto sobre violência. Elas provavelmente nunca mais voltariam a se encontrar. A senhora indignada desceu no ponto seguinte, não trocaram telefone, nem mesmo souberam seus nomes, entretanto, algo muito mais complexo: suas impressões, seus valores, sua rotina, seu passado e suas expectativas para o futuro. Esse tempo que detém o poder de transformar as coisas e as relações com as coisas. Assim como a minha relação com o passageiro que subiria a seguir, cuja figura não me parecera estranha desta vez. Era um senhor grisalho que já havia entrado numa van que faz o mesmo percurso e cumprimentado os passageiros com um “boa noite a todos” recebendo em troca uma resposta tímida. Eu mesma não me lembro de tê-lo respondido. Entretanto, logo que sentou-se estendeu a mão cheia de moedas para pagar sua passagem e  desculpou-se dirigindo-se ao motorista. Sorri. Percebi que a minha relação com aquele senhor acabara de ser transformada naquele espaço quando apertei nas mãos a minha própria dúzia de moedas. Então disse:  _“Vou fazer mesmo!”  E naquele instante acabávamos de  traçar o nosso "lugar" comum.